Como poderia explicar a vida de Chinmae em tão poucas páginas, sendo que tudo em sua vida parecia ter sido roteirizado por alguém muito sádico e que não se importaria de ver ser personagem sofrendo. Era assim que ele se sentia, um personagem que em meio a tragédias montou toda uma vida de fachada para fingir que estava tudo bem. Fingir que seus pais estavam bem, que sua escolha de graduação fora boa, que seus vídeos eram bons e todo aquele Chinmae gentil das redes realmente existia com uma graciosidade quase fictícia, daqueles dos tipos de dorama meloso em que o mocinho é um cara doce, educado e não mediria esforços para ficar com a mocinha? Pois é, era assim que ele se sentia.

Ele não mediria esforços para ficar com ninguém. Havia feito isso alguns anos atrás e não repetiria nem sob ameaça de morte. Mas ele não mediria esforços para tirar quem quer que fosse e entrasse em seu caminho e o atrapalhasse, nem mesmo se dava o trabalho de se sentir “mal” porque era filho do dono e, por isso, havia chegado numa posição muito importante dentro da empresa. Essa posição era exatamente o motivo de seu estresse naquele momento, bem como os motivos para estar desde o café da manhã revirando seus arquivos impressos e digitais para verificar qual havia sido e qual dos outros nutricionistas havia assinado um documento com informações falsas.

Mesmo que realmente não gostasse 100% do que fazia, ele gostaria de ter um mínimo de noção de sua equipe, de modo que acidentes como aqueles não acontecesse novamente. Agora, precisaria mobilizar todo o departamento, além de acionar o jurídico para enfrentar o processo que algumas famílias estavam entrando pelas restrições não terem sido respeitadas, causando várias crises ao longo do país com a venda de um “kit refeição” de micro-ondas, cuja proposta era praticidade, funcionalidade e vida saudável.  Nenhum dos três pareciam ter sido respeitados e seu nome era o mais comentado em fóruns e pela opinião pública, já que o rosto da área de nutrição era ele. Por mais que as coisas estivessem meio fora de controle naquele momento, ele ainda agradecia por ter sua legião de fãs ainda consigo.

Por volta das 9 da manhã, convocou uma reunião com toda a equipe de seu departamento. Quem quer que fosse o culpado por aquela assinatura, não quis assumir a culpa e ele estava a ponto de se descabelar de tanto estresse. Portanto, aquela carinha de abestado, como ele já tinha ouvido falar por aí, não poderia estar mais séria enquanto o jaleco ainda aberto parecia dar a impressão de uma capa. Na sala de reuniões, ele jogou as pastas que carregava de qualquer maneira, praticamente bufando e ouvindo o barulho alto que o atrito causara. - Bom, eu errei em confiar cegamente em vocês e aprovar todos os projetos apresentados sem dar a devida atenção ao que poderia acontecer. Acabo de vir da produção, e misteriosamente eles não têm mais o cardápio aprovado devido à rotação das marmitas. - Ele pausou a fala, observando cada um dos 7 rostos ali presente e inclusive a do seu assistente. - Se até a hora do almoço, ou melhor, se até a hora em que eu me encontrar com o jurídico o culpado não tiver se apresentado, todos vocês estão demitidos. Todos. - Ele disse por fim. Havia ficado cerca de meia hora ali, repassando algumas informações e, como conclusão decidiu explanar a bomba. - O RH já está sabendo e seus avisos estão prontos, reflitam bastante sobre as decisões tomadas, porque quem quer que seja carregará a culpa de demitir todos os colegas.

Encerrou a reunião e voltou-se para sua sala por último, enquanto via os outros se afastando. Seu assistente se aproximou e indicou a que horas começaria a reunião e ele assentiu, repassando a agenda da próxima semana e esperando que algo bom pudesse acontecer naquele dia, pois ele já não suportava mais aquela pressão sufocante que o impedia de sequer pensar direito. Contudo, ainda se martirizava por ter se achado tão autossuficiente e não ter conferido todos os dados com a maior certeza do mundo antes de aprovar o projeto, com certeza, metade daquela situação não estaria acontecendo. Chinmae odiava-se ainda mais por estar gastando um sábado todinho na empresa, enquanto milhares de pessoas simplesmente poderiam acordar tarde e simplesmente não fazer nada. Ele, entretanto, tinha todo um departamento sob seu controle. Com certo pesar, reuniu todos seus materiais e encaminhou-se para a sala de reuniões onde o advogado o esperaria.

Percebeu pelo vidro que o rapaz já o aguardava, portanto, entrou na sala e deixou as pastas organizadas ao que se apresentou formalmente. - Bom dia, sou Park, diretor do departamento de nutrição da empresa. - Curvou-se minimamente, encaminhando-se para o assento algumas cadeiras de distância do outro. - Trouxe esses documentos, acredito que poderíamos utilizá-los para montar a defesa, mas isso é o senhor quem saberá me dizer. - Encerrou-se, abrindo algumas delas sem ainda olhá-lo com atenção, pois procurava algumas partes importantes da defesa.

Estar trabalhando na empresa era uma coisa que finalmente começara a fazer sentido para Chinmae ao longo do tempo que passava ali. Vez ou outra participava de voluntariados para auxiliar em escolas, abrigos e programas de assistência social de modo geral, mas ali ele se sentia à vontade para poder realmente fazer um cardápio que condissesse com as necessidades do trabalhador, pois ele entendia que o salário que pagava seus luxos vinha da produção da fábrica e de quanto eles vendessem e conseguissem faturar. Era, na verdade, o mínimo que seus pais poderiam fazer, dá-lo aquele cargo alto, devido às constantes instabilidades às quais submetia o nutricionista e o fazia repensar em como sua família parecia errada, agora que aquele olhar infantil e crente em tudo havia passado e ele conhecia como o ser humano era podre.

Não que ele não fosse, o homem sabia muito que ele tampouco prestava e era igualmente ruim, ele só fazia coisas diferentes. Como quando em sua juventude descobriu rapidamente como conseguir as coisas e como estar em situações de poder e prazerosas poderiam ser recompensantes e ele não media esforços para estar por cima. Nas mais variadas formas de se pensar, claro. Não se arrependia de nada, ou melhor, de quase nada. Existia um arrependimento encravado em seu coração cultivado em dez anos de distância em que tocou sua vida sem realmente considerar outras pessoas caso não houvesse benefício algum para si.

O pior de tudo é que Chinmae era o único que ainda alimentava certas lembranças e talvez o outro tivesse seguido sua vida perfeitamente bem, desde quando apenas o deixou ao relento, mostrando-lhe que mais uma vez o jovem Park só servia para pequenas aventuras num banheiro ou em qualquer lugar possível. Chinmae, o maior narcisista que você irá conhecer, a pessoa mais egocêntrica jamais conhecida se odiava por ter se deixado levar por uma brincadeirinha entre jovens de um ensino médio que se afastaram e isso mudou sua vida de uma forma tão bizarra, que seria no mínimo desconcertante para ele mesmo ficar pensando em coisas assim o tempo todo, mas era isso o que acontecia frequentemente, bizarro para dizer o mínimo.

- Sim, senhor Bae. Eu sou o responsável por todo o departamento de nutrição, desde produtos para o consumo do público a alimentação dos trabalhadores, tudo está sob minha responsabilidade. - Apressou-se a sorrir para não parecer tão ríspido, mas sua faceta profissional era mesmo impressionante, assim como ralhou com seus subordinados pelo erro cometido. - Contudo esse erro aconteceu por falta de uma leitura mais atenta. - E era verdade, o Park tinha total atenção antes de aprovar qualquer documento e inúmeros já haviam sido corrigidos, porém, o processo e algumas crises vieram no cardápio especial e ele se preocupava muito em como aquilo alteraria a imagem da empresa em relação ao cuidado aos funcionários.  

- Sim, esses são os originais. Se o senhor perceber, verá que alguns estão riscados e com marcações, acompanhados de outros corrigidos, essas são as alterações que foram feitas antes de submetê-las aos restaurantes e para o departamento de produção. - Era muito engraçado como aquele youtuber que fazia review de meros produtos de beleza e, vez ou outra, ensinava algumas receitas todo brincalhão se transformava em alguém totalmente diferente em se tratando de seu trabalho e das responsabilidades que eram de sua competência. Mas havia algo que não estava batendo, Chinmae sentia um leve incômodo, como se todo aquele ambiente não o estivesse fazendo bem por algum motivo.

Para ser sincero, ele mal havia prestado atenção no que o outro rapaz dissera. Dentro de si, uma enorme confusão se formou e o diretor estava confuso demais para entender o que estava acontecendo. Ouviu a pergunta do outro e, quando levantou o rosto, enfim percebeu porque a lembrança e a sala estavam abafando seus sentidos. - N... não, ainda não. - Sua voz travou em meio a fala e ele precisou engolir em seco até que enfim compreendeu o que estava acontecendo e porque aquele incômodo aumentava mais conforme a necessidade de sair dali crescia proporcionalmente. Abaixou a cabeça, fingindo revirar algumas folhas a procura de alguma coisa que pudesse usar de desculpa, mas sabia que os olhos atentos de um advogado perceberiam algo errado.

Após tantos anos, finalmente ele havia encontrado a pessoa que nunca saíra de seu coração. Ele reencontrar Minkyu, o rapaz que praticamente não conhecia pelo nome, mas que fez muito que seu coração palpitasse e a quem ele um dia pensou em se declarar.

O cara que o havia chutado como se fosse um nada.

Parecia tão errado tudo aquilo acontecendo com ele naquele momento que ultrapassava a dimensão do desconfortável. Chinmae preferia fingir para si mesmo que o seu passado não o incomodava, preferia fingir ser uma pessoa boa a deixar que seu verdadeiro eu viesse à tona e desmascarassem e, por fim, vissem o ser egocêntrico que era. Não seria muito difícil, afinal, que profissional de respeito viveria aquela vida dupla apenas por gostar de atenção? Para alguém num cargo alto e de chefia, seria melhor se concentrar nas suas responsabilidades do que viver em busca do centro das atenções da vida de outras pessoas.

Contudo, dentre todas as coisas ruins que aconteceram e aconteceriam, definitivamente estar ali era a pior com toda a certeza do mundo. No passado, não era para ter nada sério e nem poderiam também. Chinmae não queria, para falar a verdade. Ele só não esperava que a rotina, talvez, houvesse feito com que ele desenvolvesse o hábito de esperar pelo colega naquela cabine do banheiro sempre que combinado. Também não se preocupou a guardar o nome, mas talvez seu cérebro estivesse de brincadeira ao gravar o nome da plaquinha do uniforme. Bae Min Kyu.

Ele queria rir, ele queria chorar e só não queria estar ali. Ele havia sido reconhecido? Torcia para que não, afinal, aquilo não tinha passado de dois jovens curiosos e com hormônios à flor da pele. Não queria ter que admitir, mas também não havia espaço para quaisquer reações, já que naquele momento, era o diretor Park e advogado Bae. Queria ter sido mais profissional e não se deixar afetar tanto por aquele momento, mas isso fazia parte das impossibilidades que surgiam cada vez com maior frequência.

Chinmae forçou um sorriso e tentou disfarçar os olhos preparados para chorar, obviamente sem sucesso. Esperava que pelo menos não fosse possível perceber tão facilmente as lágrimas que se acumulavam ali. - Sim, está. Eu só... - Disse nervoso, suas mãos tremiam e de supetão levantou-se da cadeira, empurrando-a mais que necessário. Juntou alguns dos papeis, amassando-os no meio do processo enquanto forçava um segundo sorriso. - Está tudo bem, eu me confundi peguei os documentos errados. - Sua voz não estava tão confiante quanto costumava ser, ele sequer parecia lembrar quem era. - Eu vou.... Eu vou pegá-los. Acho que não será preciso remarcar. - Chinmae respondeu finalmente, curvando-se ao sair da sala. - Só um momento. - Voltou ao seu escritório ainda perdido, ignorando os chamados do assistente.

Sentou-se à cadeira e acionou o telefone. - Avise ao advogado Bae que não encontrei os documentos e que irei remarcar para continuarmos tratando desse assunto. Desculpe-se por mim, diga que além de não os encontrar, estou com enxaqueca e não conseguirei continuar a reunião. Não deixe ninguém entrar no escritório e anote todas as ligações. - Pediu por fim, ao que finalmente deixou-se relaxar na cadeira, virando-se de frente para a grande janela atrás de sua mesa. Fechou os olhos por um breve momento e finalmente se permitiu sentir todas as emoções guardadas até então. Fora a primeira vez em mais de 8 anos que Chinmae chorou mais uma vez.